O Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) consiste em tributo estadual de caráter essencialmente arrecadatório, figurando como a maior fonte de receita dos Estados e do Distrito Federal.
A incidência do referido imposto sujeita-se à verificação de situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência (artigo 114, do Código Tributário Nacional), intitulada fato gerador. No tocante à tributação do fornecimento de energia elétrica, mostram-se relevantes as operações relativas à circulação de mercadorias (artigo 155, inciso II, da Carta Magna Constitucional).
Primeiramente, calha destacar que a energia elétrica, para fins jurídicos, é tratada como “mercadoria” (artigo 155, § 2º, alínea b, da Constituição Federal), a qual é passível de circulação, por se tratar, para efeitos legais, de bem móvel (artigo 83, inciso I, do Código Civil). Destaca-se, ainda, que, para a incidência do ICMS, no tocante à circulação de mercadorias, mostram-se necessários, cumulativamente, os seguintes requisitos: alteração da propriedade do bem móvel (circulação jurídica); operação cujo objeto seja bem móvel destinado ao comércio (mercadoria); venda eivada de natureza mercantil, ou seja, prestada por indivíduo que realize habitualmente tal operação (natureza mercantil).
No que se refere à caracterização da circulação jurídica, é indispensável haver alteração da propriedade da mercadoria, mostrando-se indevido o imposto no caso de mera circulação em sentido físico, ou seja, transporte do bem, mantendo-se sua titularidade.1 No tocante às mercadorias, intitulam-se como bens móveis destinados ao comércio, sendo que a operação é tida como mercantil quando realizada por pessoa, física ou jurídica, que atue com habitualidade ou em volume suficiente para caracterizar intuito comercial em ramo específico de atuação (artigo 4º, da Lei Complementar n. 87/96 – Lei Kandir).
Assim, caracterizada a energia elétrica como uma mercadoria sui generis passível de circulação, mostra-se indispensável compreender as etapas de sua distribuição. Conforme dizeres da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), o transporte da mercadoria em questão, das usinas até os destinatários finais (residenciais, rurais ou empresariais), ocorre através das redes de transmissão, consubstanciada em cabos, revestidos por camadas isolantes e fixados em grandes torres de metal.
Desta feita, pela utilização dos serviços relacionados às redes de transmissão, a qual subsidia o transporte e a entrega da energia elétrica das geradoras e distribuidoras ao usuário, instituíram-se as tarifas de Uso do Sistema de Transmissão (TUST) e Uso dos Sistemas Elétricos de Distribuição (TUSD), cujo fator de diferenciação é o modus operandi do fornecimento, ou seja, se proveniente de transmissão direta (linhas de transmissão com maiores voltagens) ou de concessionárias de distribuição (transporte de energia de voltagens menores e mais seguras aos clientes).
Isso posto, sendo inconteste o caráter fragmentário das etapas de prestação do serviço de energia elétrica (geração, transmissão e distribuição) e, sabendo-se que o ICMS incide apenas no momento em que há efetiva entrega da energia ao usuário final (consumidor), mostra-se desarrazoado sustentar estarem encampadas em referida tributação, as tarifas remuneratórias da transmissão e distribuição da mercadoria em comento. Ora, permitir referida incidência afrontaria o princípio constitucional da reserva legal insculpido no artigo 150, inciso I, da Constituição Federal, o qual dispõe ser vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios exigir ou aumentar tributos sem lei que o estabeleça.
Ocorre que referida violação às diretrizes constitucionais é a regra no cenário nacional, já que os Estados cobram o ICMS não só sobre a Tarifa de Energia (TE), a qual refere-se à energia elétrica efetivamente consumida, acrescida dos respectivos tributos, mas também sobre a TUST e a TUSD, tratando como tributáveis taxas que não compreendem o fato gerador do Imposto em tela.
Ademais, a alteração da titularidade da energia elétrica ocorre no momento em que esta ingressa no ponto de entrega (relógio medidor) do estabelecimento do destinatário final, tornando-se individualizada e efetivamente consumida2, só então dando ensejo à cobrança (Resolução n. 414/2010, da ANEEL).
A jurisprudência dos Tribunais Superiores, por muito tempo, mostrou-se favorável ao consumidor3, encampando o entendimento retrocitado, o qual vai ao encontro das disposições constitucionais. Ocorre que a pretensão dos usuários do serviço de energia elétrica, apesar de legítima, contraria o interesse público secundário do Estado, o qual via sua principal e mais facilitada fonte de arrecadação esvaindo-se em larga escala.
Desta feita, cedendo à pressão política, a 1º Turma do Superior Tribunal de Justiça, em decisão isolada, datada de março de 2017, entendeu pela legalidade da incidência do ICMS sobre o TUST e TUSD4, ratificando posicionamento abusivo adotado pelos entes estatais de que as fases de geração, transmissão e distribuição do serviço de energia elétrica são indissociáveis e, supostamente, comporiam o preço final da operação e consequentemente a base de cálculo do imposto. Outro fundamento empregado foi o de que permitir tratamento diferenciado entre consumidores de uma mesma mercadoria (livres e cativos)5, subverteria os postulados da livre concorrência e da capacidade contributiva.
A despeito da insegurança jurídica gerada por esse entendimento desarrazoado e contrariando o cenário catastrófico que aparentemente se instauraria, a 2º Turma da nossa Corte Cidadã, em abril de 2017, ratificou o entendimento reiterado no sentido de denegar a incidência do ICMS nos casos em testilha.6
Até que esse dilema seja resolvido (espera-se que favoravelmente aos consumidores), os contribuintes invariavelmente continuarão suportando um ônus manifestamente ilegal, sob o pretexto de proteger-se as finanças públicas, intensificando o fenômeno da erosão da consciência constitucional7.
Pelo exposto, constata-se que esse debate cessará apenas no momento em que o STJ pacificar seu entendimento, tornando sua jurisprudência estável, íntegra e coerente.
1REsp n. 1321681, Relator: Ministro Benedito Gonçalves, Data de Julgamento: 26/02/2013, T1 – Primeira Turma, Data de Publicação no DJe 05/03/2013.
2 Súmula 391, do STJ: “O ICMS incide sobre o valor da tarifa de energia elétrica correspondente à demanda de potência efetivamente utilizada”
3 Agravo Interno no Recurso Especial n. 2016/0157592-8. Data do Julgamento: 10/11/2016. Data da Publicação/Fonte no DJe: 30/11/2016.
4 REsp: 1163020, Relator: Ministro Gurgel de Faria, Data de Julgamento: 21/03/2017, T1 – Primeira Turma, Data de Publicação: DJe 27/03/2017.
5 Os consumidores cativos são aqueles que adquirem a energia das concessionárias de distribuição às quais estão ligados, sendo que suas tarifas são reguladas pelo Governo. Já os consumidores livres compram energia diretamente dos geradores ou comercializadores, através de contratos bilaterais e condições livremente negociadas.
6 REsp 1649658, Relator: Ministro Herman Benjamin, Data do Julgamento: 20/04/2017, T2 – Segunda Turma, Data da Publicação no DJe: 05/05/2017.
7 Trata-se de teoria criada por Karl Loewenstein e empregada no Brasil por Celso Antônio Bandeira de Mello, consistente em um fenômeno no qual a indiferença dos Poderes Públicos em relação à Constituição gera um efeito psicológico na sociedade, atrofiando a consciência de que a Constituição é uma norma que deve ser respeitada e observada.